By Gilka
Você estava dormindo aquele seu sono silencioso quase profundo e sempre atento a qualquer movimento meu. Eu sempre soube que você estaria atento. Por isso eu nunca vasculhei suas gavetas, nunca abri seus livros, nunca tentei acariciar sua pele, enquanto você dormia. O medo de ser descoberta, mesmo que já não houvessem gavetas, nem livros. Eu já não tinha mais o que descobrir. Você já não podia esconder coisas de mim. Eu havia crescido, e agora tudo era meio óbvio, meio claro, até meio sem graça. Completamente sem graça, suas gavetas tão organizadas.
E enquanto você dormia, eu pensava naquele convite para viajar amanhã. E naquelas outras coisas tantas que estavam programadas para o fim de semana. Eu, sua hóspede parasita, uma calada falante. Esgueirando-me pelas conversas, tentando lidar com esse desejo. Ser eu mesma ou ser educada? Com licença, por favor, obrigada. Desculpa, mas talvez fosse melhor eu ficar só. Ir caminhar pela Paulista entre os prédios e sentir o concreto sobre minha frágil visão dessa vida capital que tanto sonhei. Mesmo que você preferisse um programa onde houvessem pessoas e não este sem nomes, nem parentescos, com faces desconhecidas, fumaça e fuligem.
E enquanto você dormia, eu resolvi te enganar, e fingi que você não iria ver, mas eu sei que viu. Levantei sem fazer barulho e sai para a sacada. Fui fumar e pensar que seria de bom tom aceitar o convite, apesar de querer ser egoísta e querer ir para outro lugar. Sozinha. E você iria brigar comigo, assim de leve, bem de mansinho. Ou, se não brigasse, iria ficar pensando que eu era diferente, esquisita, meio lagarta fazendo casulo pra se transformar em algo.
E enquanto você dormia, eu esqueci do convite e da minha vontade. Fiquei olhando pra cidade. Para aquelas tantas outras sacadas acesas e apagadas de outros tantos prédios. Aqueles de um por andar, sabe? Traguei minha urgência de ter uma sacada igual àquelas com flores e mobília atrás da parede. Ter alguém pra sentar no sofá, e ficar assim por dias sem sair. Nem para ir na padaria ali na esquina da Vieira de Moraes. Mas eu não lhe acordaria para falar dos sofás e de como queria você sentado neles. Tudo porque você um dia disse que eu tinha algo diferente por dentro, algo assim quase borboleta. Não disse? Desculpas, fui eu que pensei que, e me apaixonei. Mas você realmente acredita em mim. Mas realmente, eu não.
E enquanto você dormia eu te olhei da sacada, segurando o cigarro com o braço esticado sobre a rua. Seu corpo silencioso, descoberto do lençol. E lembrei que desde o primeiro olhar eu soube que meus sentimentos e meus desejos ficariam retidos atrás dos meus olhos e jamais tocariam as minhas mãos, quanto mais seu corpo. Ah, se você ouvisse meus pensamentos agora, diria que isso é bobagem. Falar de sentimentos é uma grande bobagem. É difícil, é arriscado, é muito arriscado. Eu mesma tenho medo. Porque o cigarro sempre acaba no ápice da conversa, e aí eu não consigo dizer mais nada. Dizer que queria você na Paulista comigo e mais ninguém.
E justamente quando meu cigarro acabou, eu decidi que não haveria mais fraqueza ou dependência. Decidi que escreveria uma nova história, talvez interessante, inspirada em alguma instalação do Masp, sem a sua ajuda e sem os seus modelos. Modelos de sacadas floridas e com sofás e com pessoas sentadas e com parentescos e com gavetas e com eu-faria-isso-no-seu-lugar.
E enquanto você dormia eu continuei escondendo coisas de você, em silêncio, e mesmo assim, você ouviu, porque estava dormindo aquele seu sono silencioso quase profundo e sempre atento a qualquer movimento meu. E como estava atento, viu também quando deitei-me na outra cama, e dormi meu sono barulhento, metafórico, que teima em não aceitar que você preste tanta atenção em mim e não me ame.